O livro que lhe conheço, embora tenha mais,
ficou-me na memória pela praticidade dos seus conselhos, pela veracidade que
venho confirmando do que prescreve, pela leve ousadia que rompe alguma tacanhez
e conservadorismo em relação à prática psicanalítica e psicoterapêutica. Por
isso, aqui deixo algumas das ideias que então registei e cada vez mais a
prática me confirma como uma voz lúcida, de preocupação com as pessoas,
deixando as teorias para o seu devido segundo plano (embora também importante).
Contardo Calligaris (2004) Cartas a um Jovem Terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos.
Contardo Calligaris (2004) Cartas a um Jovem Terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos.
«Seu primeiro
compromisso não é com a “psicanálise” ou “psicoterapia,” nem com Freud, Melanie
Klein, Lacan ou qualquer outro chefe de escola, nem com a instituição na qual
você se formou.
Seu primeiro compromisso é com as pessoas que confiam em você e trazem
para seu consultório uma queixa que pede para ser escutada e, por que não,
resolvida. Ou, mais geralmente, seu primeiro compromisso é com a comunidade na
qual você presta serviços. E o compromisso é de prestar o melhor serviço
possível.
Diria: “Para estabelecer sua clínica, vale esta máxima: se seu
compromisso for com os pacientes, não se preocupe, eles vão acabar sabendo.»
«Em regra, a disputa entre psicoterapia ou
psicanálise de um lado e biopsiquiatria ou neurociências do outro é uma falsa
disputa. Na minha experiência, quem alimenta essa oposição não conhece quase
nada de psicoterapia ou psicanálise e sabe ainda menos de farmacoterapia e
neurociência.
Quem conhece os assuntos e
pratica ou pesquisa numa das ditas disciplinas sabe que não há disputa alguma.
Se um espécie de controvérsia ressurge regularmente, isso se deve a duas
razões: para a mídia, o tema é bom para um especial de domingo; para alguns
interessados (as companhias farmacêuticas e alguns profissionais das três
áreas), talvez funcione a ideia de que é preciso defender sua fatia de mercado.
1) Se alguém me xinga, se morre um amigo, se por acaso me lembro de um
evento feliz de minha infância, as emoções que me invadirão, boas ou ruins,
podem, sempre e legitimamente, ser descritas como fenómenos químicos que
acontecem no meu cérebro. Aliás, são fenómenos químicos.
Hoje, somos capazes de
descrever quimicamente algumas emoções, de uma maneira ainda incipiente, mas já
relativamente fina. É ótimo, porque isso abre a possibilidade de agir sobre
essas emoções.
Fico triste porque meu amigo
morreu; quem sabe no futuro exista um inibidor da captação da serotonina de
acção imediata, e poderei engolir a seco uma pílula que, numa meia hora,
permitirá que eu volte a sorrir.
É óbvio que não terei agido
sobre a causa de minha tristeza (meu amigo continua morto), mas, graças
`descrição química de minha emoção, terei conseguido modificar meu humor. A
mesma coisa aconteceria caso recorresse a um fármaco para aliviar os efeitos
maníacos de minha lembrança de infância feliz.
A farmacopeia pode agir
sobre a causa de meu humor (e não apenas sobre meu humor) quando o meu humor
não é só um estado químico (este é sempre o caso), mas é também de origem
química. Por exemplo, uma depressão produzida por uma insuficiência da tireóide
é um humor de origem química, que é, portanto, propriamente curando em sua
causa por um suplemento hormonal correto.
Esses casos são
relativamente raros. Mesmo as depressões ditas endógenas ( ou seja, que não
parecem ser causadas por fatos externos à vida do paciente) são, em geral,
efeito de processos complexos de pensamentos e representações. O que, de novo,
não significa que não sejam descritas adequadamente em termos químicos.
Ora, é óbvio para qualquer
psicoterapeuta que, em muitas situações, é aconselhável tentar modificar o
humor do paciente quimicamente. Por exemplo, um paciente deprimido a ponto de
não sair da cama e não abrir a boca também não terá a mínima motivação
necessária para operar algumas mudanças em sua vida, com ou sem a ajuda de um
terapeuta. Uma correcção química do nível de serotonina poderá, com um pouco de
sorte, permitir que ele encontre as forças para se mexer.
Mas ninguém, com a excepção
talvez dos acionistas das companhias farmacêuticas, sonha com um mundo em que
as causas de nossos afectos seriam sistematicamente negligenciadas e nossos
humores pacificados com uma contínua intervenção química capaz de impor ao
cérebro um equilíbrio ideal.
Todos sabemos que, por mais
que eu tome a pílula mágica na hora da morte de meu amigo, algum dia terei de
enfrentar a dor de um luto. A não ser que decida viver para o resto da minha
vida sob anestesia.»
«Não defendo normalidade alguma; não defino uma
maneira de ser que me pareça mais certa do que as outras. Mas haverá algo que,
de alguma forma, mesmo sem querer, promovo em meus pacientes? É verdade que
nada me parece patológico, a menos que seja, directa ou indirectamente, o
objecto da queixa do paciente. Mas, há uma coisa que prezo e outra que, de uma
certa forma, antagonizo e tento contrariar, mesmo que não seja objecto de
queixa.
Prezo a qualidade da
experiência vivida. Mas a qualidade não é uma questão de agrado ou desagrado; a
qualidade da experiência á função da intensidade com a qual nos permitimos
viver. O destino (digamos assim) nos serve pratos variados: alguns dolorosos,
outros jocosos e festivos. O importante, para mim, não é que os dolorosos sejam
evitado; o importante é que todos sejam saborosos, ou seja, que topemos
saboreà-los.
É muito raro, por exemplo,
que entenda o trabalho psicoterápico como uma forma de consolação que tentaria
atenuar o impacto de uma lembrança ou de um evento penosos. Das várias formas
possíveis de infelicidade, a que me parece mais aflitiva não é necessariamente
a que mais dói. Muito mais trágico me parece o destino de quem atravessa a vida
sem se molhar, como se os eventos (felizes ou nefastos) escorressem sobre a
pele como água sobre as plumas de um pato.
Com seus altos e baixos,
imagine nossa vida como uma breve passagem por um circuito de montanhas-russas.
Quem atravessasse a experiência anestesiado, sem gritos, pavor e risos, teria
jogado fora o dinheiro do bilhete. Tenho a ambição, ao contrário, de ajudar
meus pacientes a viver de tal forma que, chegando ao fim, eles possam dizer-se
que a corrida foi boa.
Passemos ao que antagonizo,
mesmo que não seja objecto de queixa do paciente. Antagonizo, em geral, os
artifícios pelos quais desistimos de ser sujeitos, ou seja, as estratégias que
encontramos para evitar aquelas dificuldades de viver que fazem parte do lote
standard de nosso cultura. Sobretudo as estratégias colectivas: desconfio das
instituições políticas, religiosas, burocráticas que oferecem a seus adeptos
uma chance de esquivar-se das expressões básicas da subjectividade moderna,
desde a incerteza moral (o que é justo? O que é errado?) até a questão sempre
aberta sobre o nosso desejo (qual é o meu querer?)
Porque antagonizar essas
formas de descanso da subjectividade? Fechando o círculo: porque elas diminuem
a intensidade da experiência, tornam a corrida sem graça.»
«A função da supervisão de um jovem terapeuta ou
analista, salvo situações catastróficas, deve ser autorizar o terapeuta,
inspirar-lhe a confiança em seus próprios atos, sem a qual nenhuma cura via ser
possível.»
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