26/03/13

Contardo Calligaris

 




O livro que lhe conheço, embora tenha mais, ficou-me na memória pela praticidade dos seus conselhos, pela veracidade que venho confirmando do que prescreve, pela leve ousadia que rompe alguma tacanhez e conservadorismo em relação à prática psicanalítica e psicoterapêutica. Por isso, aqui deixo algumas das ideias que então registei e cada vez mais a prática me confirma como uma voz lúcida, de preocupação com as pessoas, deixando as teorias para o seu devido segundo plano (embora também importante).

Contardo Calligaris (2004) Cartas a um Jovem Terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos.


«Seu primeiro compromisso não é com a “psicanálise” ou “psicoterapia,” nem com Freud, Melanie Klein, Lacan ou qualquer outro chefe de escola, nem com a instituição na qual você se formou.

   Seu primeiro compromisso é com as pessoas que confiam em você e trazem para seu consultório uma queixa que pede para ser escutada e, por que não, resolvida. Ou, mais geralmente, seu primeiro compromisso é com a comunidade na qual você presta serviços. E o compromisso é de prestar o melhor serviço possível.

   Diria: “Para estabelecer sua clínica, vale esta máxima: se seu compromisso for com os pacientes, não se preocupe, eles vão acabar sabendo.»

 

«Em regra, a disputa entre psicoterapia ou psicanálise de um lado e biopsiquiatria ou neurociências do outro é uma falsa disputa. Na minha experiência, quem alimenta essa oposição não conhece quase nada de psicoterapia ou psicanálise e sabe ainda menos de farmacoterapia e neurociência.

    Quem conhece os assuntos e pratica ou pesquisa numa das ditas disciplinas sabe que não há disputa alguma. Se um espécie de controvérsia ressurge regularmente, isso se deve a duas razões: para a mídia, o tema é bom para um especial de domingo; para alguns interessados (as companhias farmacêuticas e alguns profissionais das três áreas), talvez funcione a ideia de que é preciso defender sua fatia de mercado.

1) Se alguém me xinga, se morre um amigo, se por acaso me lembro de um evento feliz de minha infância, as emoções que me invadirão, boas ou ruins, podem, sempre e legitimamente, ser descritas como fenómenos químicos que acontecem no meu cérebro. Aliás, são fenómenos químicos.

    Hoje, somos capazes de descrever quimicamente algumas emoções, de uma maneira ainda incipiente, mas já relativamente fina. É ótimo, porque isso abre a possibilidade de agir sobre essas emoções.

    Fico triste porque meu amigo morreu; quem sabe no futuro exista um inibidor da captação da serotonina de acção imediata, e poderei engolir a seco uma pílula que, numa meia hora, permitirá que eu volte a sorrir.

    É óbvio que não terei agido sobre a causa de minha tristeza (meu amigo continua morto), mas, graças `descrição química de minha emoção, terei conseguido modificar meu humor. A mesma coisa aconteceria caso recorresse a um fármaco para aliviar os efeitos maníacos de minha lembrança de infância feliz.

    A farmacopeia pode agir sobre a causa de meu humor (e não apenas sobre meu humor) quando o meu humor não é só um estado químico (este é sempre o caso), mas é também de origem química. Por exemplo, uma depressão produzida por uma insuficiência da tireóide é um humor de origem química, que é, portanto, propriamente curando em sua causa por um suplemento hormonal correto.

    Esses casos são relativamente raros. Mesmo as depressões ditas endógenas ( ou seja, que não parecem ser causadas por fatos externos à vida do paciente) são, em geral, efeito de processos complexos de pensamentos e representações. O que, de novo, não significa que não sejam descritas adequadamente em termos químicos.

    Ora, é óbvio para qualquer psicoterapeuta que, em muitas situações, é aconselhável tentar modificar o humor do paciente quimicamente. Por exemplo, um paciente deprimido a ponto de não sair da cama e não abrir a boca também não terá a mínima motivação necessária para operar algumas mudanças em sua vida, com ou sem a ajuda de um terapeuta. Uma correcção química do nível de serotonina poderá, com um pouco de sorte, permitir que ele encontre as forças para se mexer.

    Mas ninguém, com a excepção talvez dos acionistas das companhias farmacêuticas, sonha com um mundo em que as causas de nossos afectos seriam sistematicamente negligenciadas e nossos humores pacificados com uma contínua intervenção química capaz de impor ao cérebro um equilíbrio ideal.

    Todos sabemos que, por mais que eu tome a pílula mágica na hora da morte de meu amigo, algum dia terei de enfrentar a dor de um luto. A não ser que decida viver para o resto da minha vida sob anestesia.»           

 

«Não defendo normalidade alguma; não defino uma maneira de ser que me pareça mais certa do que as outras. Mas haverá algo que, de alguma forma, mesmo sem querer, promovo em meus pacientes? É verdade que nada me parece patológico, a menos que seja, directa ou indirectamente, o objecto da queixa do paciente. Mas, há uma coisa que prezo e outra que, de uma certa forma, antagonizo e tento contrariar, mesmo que não seja objecto de queixa.

    Prezo a qualidade da experiência vivida. Mas a qualidade não é uma questão de agrado ou desagrado; a qualidade da experiência á função da intensidade com a qual nos permitimos viver. O destino (digamos assim) nos serve pratos variados: alguns dolorosos, outros jocosos e festivos. O importante, para mim, não é que os dolorosos sejam evitado; o importante é que todos sejam saborosos, ou seja, que topemos saboreà-los.

    É muito raro, por exemplo, que entenda o trabalho psicoterápico como uma forma de consolação que tentaria atenuar o impacto de uma lembrança ou de um evento penosos. Das várias formas possíveis de infelicidade, a que me parece mais aflitiva não é necessariamente a que mais dói. Muito mais trágico me parece o destino de quem atravessa a vida sem se molhar, como se os eventos (felizes ou nefastos) escorressem sobre a pele como água sobre as plumas de um pato.

    Com seus altos e baixos, imagine nossa vida como uma breve passagem por um circuito de montanhas-russas. Quem atravessasse a experiência anestesiado, sem gritos, pavor e risos, teria jogado fora o dinheiro do bilhete. Tenho a ambição, ao contrário, de ajudar meus pacientes a viver de tal forma que, chegando ao fim, eles possam dizer-se que a corrida foi boa.

    Passemos ao que antagonizo, mesmo que não seja objecto de queixa do paciente. Antagonizo, em geral, os artifícios pelos quais desistimos de ser sujeitos, ou seja, as estratégias que encontramos para evitar aquelas dificuldades de viver que fazem parte do lote standard de nosso cultura. Sobretudo as estratégias colectivas: desconfio das instituições políticas, religiosas, burocráticas que oferecem a seus adeptos uma chance de esquivar-se das expressões básicas da subjectividade moderna, desde a incerteza moral (o que é justo? O que é errado?) até a questão sempre aberta sobre o nosso desejo (qual é o meu querer?)

    Porque antagonizar essas formas de descanso da subjectividade? Fechando o círculo: porque elas diminuem a intensidade da experiência, tornam a corrida sem graça.»

 

«A função da supervisão de um jovem terapeuta ou analista, salvo situações catastróficas, deve ser autorizar o terapeuta, inspirar-lhe a confiança em seus próprios atos, sem a qual nenhuma cura via ser possível.»
 

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